Igor Stravinsky e o neo-classicismo

Na música, o neo-classicismo surge no período entre as duas guerras mundiais da primeira metade do Século XX e é caracterizado pelo uso de modelos que se inspiram na música do Século XVIII, quer na música do período clássico, quer na música do período barroco. Esta referência ao passado tanto se pode revestir ao nível das formas usadas, como ao nível dos aspectos harmónicos e melódicos da própria música. Contudo, este aparente retrocesso ao passado não se constitui como um verdadeiro retorno ao uso de modelos musicais de épocas históricas passadas, mas antes resulta na criação de novos modelos musicais inspirados neste próprio passado. Assim, a música irá nos parecer, ao mesmo tempo, familiar e estranha. É nesta dualidade que se caracteriza a música deste período da História da Música Erudita do Século XX, sendo o surgimento do neo-classicismo por vezes visto como uma consequência directa e/ou indirecta da Primeira Guerra Mundial (1914/18), procurando-se, desta forma, um retorno ao racional, em contraste com o que vinha acontecendo nas artes durante o Século XIX, com o romantismo e o pós-romantismo musicais, onde se apelava profusamente à expressão dos afectos.
Igor Stravinski (1882-1971) é um dos compositores incontornáveis quando se pretende abordar a música erudita deste período neo-clássico. A par de Paul Hindmith (1895-1963), Sergei Prokofief (1891-1953), Bela Bartók (1881-1945), e outros, Stravinsky vai compor algumas das obras musicais mais marcantes deste período, entre as quais podemos referir: Pulcinella (1920), Octet (1923), Symphonie des Psaumes (1930), entre outras. Apesar de L'Histoire du Soldat (1918) ser muitas vezes incluída no período composicional anterior deste compositor -- o chamado período russo --, a mesma já possui diversos elementos que poderão ser já descritos como sendo neo-clássicos, quer ao nível do uso de formas musicais do passado -- algo visível na designação dos próprios andamentos em que esta mesma obra se subdivide --, quer ao nível da harmonia usada que recorre a estruturas politonais e/ou polifuncionais.
Comecemos, pois, por assistir a alguns vídeos de trechos referentes a obras de Stravinsky do seu período neo-clássico:



a) Abertura do Bailado Pulcinella. Neste é de reparar que, sobre uma música em forma de Ritornello, encontramos uma orquestração que tem elementos claramente contemporâneos.




b) Primeiro andamento de Octet para instrumentos de sopro. Nesta obra, apesar dos modelos formais usados corresponderem aos do Século XVIII, os aspectos melódicos e harmónicos são claramente contemporâneos. Esta dualidade de características musicais é um dos elementos chave no neo-classicismo.




c) Iremos continuar esta nossa viagem por alguns trechos de obras representativas do estilo neo-clássico em Stravinsky, ouvindo Exaudi orationem meam, Domine da Symphonie des Psaumes deste compositor.




d) Por último, iremos ouvir o andamento inicial de L'Histoire do Soldat de Igor Stravinsky, obra que, apesar de alguns autores se referirem à mesma como ainda fazendo do chamado período russo, já possui elementos que poderemos caracterizar claramente como sendo neo-clássicos.




Sugere-se que o aluno pesquise na internet conteúdos e informação relativa ao neo-classicismo na obra musical de Stravinsky, apresentando, por escrito, um breve resumo daquilo que encontrou.

Apresentação de «L'Histoire du Soldat»

L'Histoire du Soldat, com música de Igor Stravinsky e libretto de Charles Ferdinand Ramuz, encontra-se dividida em duas partes, existindo duas versões da mesma: uma, datada de 1918, que é uma mistura de música, teatro e ballet; e outra, de 1920, que se constitui numa versão de câmara da referida obra, a qual mantém somente alguns dos andamentos da versão original. A estrutura da referida obra, na versão de 1918 para clarinete, fagote, cornetão a pistões, trombone, bateria, violino e contrabaixo, se divide nos seguintes números:

  • Primeira Parte
  1. A marcha do Soldado. Música de marcha
  2. Música para a cena 1
  3. Música para a cena 2
  4. Música para a cena 3
  • Segunda Parte
  1. A marcha do Soldado. Música de Marcha
  2. A marcha Real
  3. O pequeno Concerto
  4. Tango
  5. Valsa
  6. Ragtime
  7. A dança do Diabo
  8. Pequeno Coral
  9. A canção do Diabo
  10. Grande Coral
  11. A marcha triunfal do Diabo

A versão de câmara para clarinete, violino e piano, também designada como Suite da História do Soldado, é constituída somente por cinco andamentos distintos, sendo o quarto andamento uma junção de três dos andamentos da segunda parte da versão inicial desta mesma obra. Assim, a estrutura da versão de câmara é a seguinte:
  1. Marcha do Soldado
  2. O violino do Soldado
  3. Pequeno Concerto
  4. Tango-Valsa-Ragtime
  5. A dança do Diabo

Observando esta estrutura de números em que a obra se divide -- quer na versão original de 1918, quer na versão de câmara de 1920 --, nos deparamos com títulos de secções que indubitavelmente nos fazem apelo a formas clássicas, como é o caso do uso de termos como Concerto, Tango, Valsa, Coral, etc.. Contudo, ouvindo a respectiva música destas mesmas secções, e apesar de sentirmos algo de familiar ao nível genérico das formas musicais usadas, percebemos que as mesmas nos surgem revestidas de novos elementos musicais ao nível da linguagem utilizada: uso de motivos rítmicos do tipo ostinato, harmonia de carácter politonal e polifuncional, entre outros. É esta duplicidade de carácter, entre elementos clássicos e contemporâneos, que define o carácter neo-clássico desta obra.

Alguns apontamentos analíticos sobre esta obra

Atente ao seguinte trecho inicial do primeiro andamento desta obra, intitulado Marcha do Soldado:


Sobressaem, imediatamente, alguns aspectos relevantes no trecho acima transcrito:
  1. A música está em grande parte escrita sobre um ostinato em tempo de marcha, o qual é quase omnipresente ao longo de todo o trecho;
  2. A harmonia, fazendo vagamente lembrar uma construção tonal em Sol maior, faz apelo à sobreposição de funções harmónicas distintas, ou mesmo, em alguns momentos, à sobreposição de tonalidades distintas;
  3. Existe um pensamento rítmico muito forte, com o uso de polirritmias, quer sobrepostas, quer justapostas. Isto é visível, entre outros aspectos, nas alternâncias de compasso efectuadas entre 2/4 (tempo de marcha), 3/4 e 3/8;
  4. Como é comum em Stravinsky, a música encontra-se em grande parte construída por meio da justaposição de temas rítmico-melódicos.

Numa análise harmónica mais detalhada, é possível, entre o terceiro e quarto compassos do trecho acima transcrito, observar algo que nos faz lembrar uma cadência perfeita: IIb - Va - Ia. Contudo, estes acordes têm sempre notas estranhas àquelas que esperaríamos num contexto tonal do Século XVIII: a função de IIb tem a sua fundamental abaixada (Lá b); na função de Va existe a substituição da sua fundamental Ré por Mi; e na função Ia, Stravinsky usa o Mi em vez da quinta esperada, Ré. É através deste conjunto de substituições que Stravinsky consegue construir, ao mesmo tempo, uma harmonia familiar que nos soa estranha.

Tendo por base este mesmo trecho, procure estender esta perspectiva analítica a todo este, identificando, entre outras coisas, os temas rítmico-melódicos que surgem ao logo do mesmo, bem como as principais funções harmónicas e centros tonais que podem ser aí observados.

Proposta de trabalho de análise

Tomando por base a redução do n.º 8 da 2.ª parte da História do Soldado de Stravinsky (Pequeno Coral) a seguir apresentada, procure responder às seguintes questões:
  1. Realize uma análise harmónica de todo o trecho, identificando a(s) tonalide(s) em que o mesmo se encontra;
  2. Tente encontrar uma explicação coerente para o que acontece com cada uma das notas escritas nos instrumentos transcritos nas duas pautas superiores de cada sistema, nomeadamente nos compassos três, quatro, seis e sete.